Amigos, quero confessar uma
coisa: Tenho ido nu a nossas aulas. Ainda bem que não perceberam. Teria sido
humilhante para mim, certamente ultrajante a vocês. Mas é essa condição de
mendigo - não de exibicionista da praça - que me permite voltar a minha casa
sem vergonha, toda segunda e quinta à noite, vestido com peças doadas por todos
à volta.
Nesse tempo pequeno ainda -
pequeno perto do que está por vir -, tive dois bons casos de como isso se dá:
1) Este conto abaixo fiz depois
de uma das aulas da Márcia Fortunato, como o exercício sugerido de escrever e
tentar se ver fora do corpo, entender como o ato ocorreu. O primeiro resultado
do escrito dei para a Luana ler. E ela me fez sugestões preciosas, sobre
trechos que poderiam estar mais bem amarrados; e apontou o que viu de valor.
Pois ficou assim:
Depois da morte,
uma vida
Andre Argolo
Pós-Formação de Escritores – turma 2012
Um bloco de concreto caiu do teto, sobre a mesa, junto com outros pedaços
de cimento, gesso, tinta, menores, por toda a sala. Tudo quase ao mesmo tempo.
Os óculos dele estavam na mesa, ao lado da máquina de escrever. Adorava os
óculos. Comprou-os fazia quase vinte anos, numa loja indicada pela então já
falecida esposa; óculos com aros dourados, nem exatamente redondos, nem muitos
ovalados, do jeito que ela sempre havia dito que ficariam ótimos no rosto dele.
Tomava cuidado, pois eram frágeis, mais pela armação do que pelas lentes –
essas, troca-se mesmo, sempre, ao avanço da miopia e das outras doenças da
vista (ou da velhice).
A mesa era um lugar seguro para os óculos desde que morreu o gato. O
bicho era danado, subia em tudo. Quebrava copos, geralmente os vazios, aqueles
esquecidos pelo sono, sabe? Dos que fazem companhia a um papel meio-escrito com
uma história sem final, todos abandonados pela sedução da cama grande,
antigamente de casal. O gato quase quebrou os óculos algumas vezes. Parecia ter
ciúme do que mantinha o olhar do dono desviado dele, para os livros, jornais.
Pouco sobrou dos óculos, ao impacto do bloco
maior de concreto, que caiu sobre a mesa, metade na máquina de escrever, de
ferro; quicou barulhento e parou no solo, com estrago já feito aos óculos do velho e outras coisinhas
menos marcantes (ou irreconhecíveis, de destroçadas). A mesa não quebrou. Fiel,
poderia chamá-la, como se um objeto pudesse ser, além de forte ou simplesmente
bem-construído.
É a fantasia humana que dá às coisas personalidade. E talvez por isso doa
ver os óculos do velho assim, esmagados… Não é de se pensar? Mesmo deformada, a
armação dourada deixa claro o que ela foi. Talvez por isso, apesar de não
servir mais ao propósito para o qual foi fabricada, possa ser chamada ainda de
óculos, apenas acompanhada a partir do acidente por uma qualificação,
praticamente uma nova profissão: Amassados. Ou inúteis - o pior adjetivo para
um objeto.
Ou não são mais óculos esses metais dourados e retorcidos? Não são mais,
porque não cumprem mais sua missão. Como o corpo no saco, que não seria mais o
velho – “sim, pode levar”. Tiveram esses aros agora sem lentes traduzido
quantas palavras para emoções, que aos olhos crus do homem eram uma neblina
escura só?
Dor mesmo na alma o velho teria sentido ao
saber de seus livros. Os livros devorados pelo fogo, antigamente pelos óculos,
comidos pelo impacto do cimento compacto – o mundo das coisas têm sua própria,
e poética de mau gosto, cadeia alimentar. Se não tivesse perdido a consciência,
provavelmente morrido já, no momento da explosão, teria sido para ele terrível
ver o fogo apagando as histórias que leu e relia frequentemente, com o prazer e
a surpresa de quem nunca vê o mesmo pôr do sol, ainda que na mesma praia.
O fogo, pior que o concreto na armação dourada. Seria preciso mais
investigação para saber a ordem dos acontecimentos. Mas que o fogo age por mais
tempo do que a queda do concreto, isso é fácil de afirmar. O que não se pode
assinar até agora é que os óculos foram esmagados antes de os livros começarem
a queimar. A serventia da informação é que se pode discutir. O que importa,
afinal, se tudo virou nada, e de ninguém? O inútil é bem mais frequente em
relatórios do que na Literatura.
Eram duas prateleiras de madeira, cheias do
chão a quase o teto, com muitas publicações, novas e antigas. Mais antigas,
velho que era o tutor delas - pois que nunca se dizia dono de um livro. Mesmo
que fosse, o fogo o teria roubado sem piedade. E mesmo autodenominando-se
tutor, o sentimento de perda provavelmente não teria sido menor do que ao dono
assumido do acervo.
Companheiros há tanto tempo, na organização por gênero que o homem fazia,
os livros traíram-se uns aos outros, ao serem combustível do que os matava.
Tinta, papel, os elementos químicos que nos permite lê-los, folheá-los, dando
ao fogo mais força, tornando gás ilegível as anotações de pensamentos ao lado
de trechos grifados, anotações que tornam cada exemplar, em meio aos milhares
de cada edição impressa, único, irrecuperável, perdido para sempre na história
apagada.
Os bombeiros chegaram a tempo de controlar as chamas ainda restritas às
estantes, prestes a avançar sobre tudo mais: talvez até outras casas, lar de
outros livros, lidos por outros óculos, de outra gente, com suas próprias
histórias, escritas ou não adiante, ao futuro, sem proteção adequada,
comburentes de si próprios. Já ouvi chamarem isso de ironia. Eu aqui,
imaginando a vida antes da morte que perito para a polícia, chamo essa
fragilidade escondida sob suposta inteligência de tristeza.
Baseado no primeiro curta do filme memória de quem
fica, sobre atentado contra judeus em Buenos Aires, Argentina, em julho de
1994.
2) O outro caso foi na última
quinta, por antes e o depois da intensa aula do Ricardo Azevedo. Antes porque
pedi ao colega Jaime que lesse uns poemas meus. E as breves observações que fez
tinham tanto sentido para mim, que já abriram meu horizonte de criação (mais
tarde, gentilmente, ainda fez-me mais boas observações por escrito, pelas quais
agradeço imensamente). Disse algo que não vinha percebendo com clareza, apesar
de quase óbvio (Nelson Rodrigues dizia que normalmente só os gênios enxergam o
óbvio): havia muita objetividade na poesia. E durante a aula, com os conceitos
passados pelo Ricardo, a explanação sobre como funciona a Metonímia e a
Metáfora, tudo expandiu minha vontade de testar linhas diferentes das que vinha
traçando. Num primeiro exercício, deu nisso:
Pragmatizontemente
Peguei meio metro de linha
Desfiada de blusa velha
E cozinhei na pressão:
Meia hora, o bastante
Para traçar um horizonte.
Estiquei ali na janela,
Bem na hora do pôr do sol
Pensei até em filmar
Distraí-me numa canção
Depois vi um passarinho
Voar com a linha no bico
- Achou que fosse minhoca,
ou quis dar-me uma lição?
Tentei novamente.
Agora um pedaço de arame
Farpado como cerca e eu, gado
Feri duas mãos na tarefa
Sujei a parede de sangue
Ao pendurar o belo horizonte.
Quando veio a lagartixa
Cansado, já nem via o traçado
Carregou em silêncio o arame
Sem ligar para o farpado
Bicho gelado da noite
Será que engoliu meu horizonte?
Decidi ensopar a ciranda
Decidi pelo macarrão
E na mesma panela da linha
Pus tomate, sal e sabão
A receita é de família
Ingrediente, o que der na telha
o que houver à mão.
Alinhei a massa na mesa
Direitinho, montei um cordão
Encaixei a pontinha na boca
Suguei pena, poesia, orgulho
Fazendo, sabe, aquele barulho?
Se era para terminar digerido
Que terminasse cá, comigo
Meu novo horizonte enrolado
Meu próprio bucho estufado.
Antes desse terrível final, havia
escrito um pior! Mas foi divertido. Sabe aquele negócio, ‘está um horror, mas
eu gostei?’, pois gostei mesmo - menos do resultado, bem mais do exercício, de
escrever menos objetivamente; escrever uma coisa querendo dizer outra,
simploriamente dizendo.
Sinto muito, mas assim está dando
certo para mim: sim, continuarei a ir nu toda aula.
Grande abraço para todos, até
segunda!
Andre/.