quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Vias de mão única


Oi gente, como a Denise, escrevi este texto depois da primeira aula da Márcia e aproveito hoje um tempinho para postá-lo... Estou aqui feliz em ler os textos de vocês, realmente um presente! Depois, com mais calma, e o cuidado devido, vou tentar registrar um pouco de tudo que me fizeram sentir...
Beijos a todos!


Vias de mão única
           
            As linhas retas e curvas personalizadas, já traçadas e aparentemente imutáveis – se desconsideradas as alterações em escala de proporção, quando do esticamento ou enrugamento circunstancial da idade –, causaram à cigana uma náusea momentânea: ao fitá-las fixamente, começaram a querer mudar de lugar e saltar daquela palma, há 75 anos escrita.
            O condutor daquelas vias de mão única tinha a clareza de tê-las imprimido um destino certo, particular e perfeito, às vezes tortuoso, mas inquestionavelmente acabado, pelo simples fato de serem fatos. Ele só buscava, na mulher de ouro nos dentes, a possibilidade de recordar as próprias impressões, sem análises, suposições ou reflexões maiores... Sua vontade estava apenas em reviver as próprias reminiscências no olhar alheio – e feminino. Buscava, na descrição de uma carícia doce, o aconchego do passado, tudo pela óbvia existência do seu e “só seu” caminho impresso de vida.
            A moça tonta, de saias longas e cabelos fartos, longe de sentir ou pressentir aquele querer fácil e vantajoso à conquista de mais um pivô dourado, fez-se feliz quando, pela vertigem daquele esmiuçar desnecessário das linhas, conseguiu vislumbrar outras estradas possíveis pelas vias afundadas na pele de idade encolhida. Pronta e mais sóbria que o estado de ânsia inicial, partiu corajosa: “Vejo um rico rio de correntes para o seu futuro nas margens do...”.
            O comandante do destino acertado, negando-se a ouvir o que poderia lhe ser porta para outras histórias, vividas ou por viver, levantou-se apavorado e saiu como vento, dando vida aos balangandãs e penduricalhos sonoros que enfeitavam o vão de acesso à sala de premunições. Minutos depois, viu-se novamente à beira do lago, jogando n´água pedrinhas sem valor ou ambições. Sua felicidade estava na calmaria de cada barulho pingado de pedra.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012



zunem zunem esfregando as patinhas
 mordiscando os beicinhos
revirando os olhinhos
dando saltinhos
aqui ali acolá
moscas moscões mosquinhas

e  sonolentos ruminam em silêncio os bois



Sem fim

Brincadeira com a música do Chico - sonoridade Sem fim Quando nasci um anjo mal afamado Deitou os olhos em mim E percebeu que eu estava impossibilitado De me virar assim Então a servidão começou E só a morte põe fim Uma nova manhã se esboça Com ares de dia ruim A esperança se destroça De ser dono de mim Então a servidão me vergou Com uma força sem fim A venda de crack na favela Foi o grande estopim Da maior das minhas mazelas Foi para isso que vim? Então a servidão ampliou Numa armadilha sem fim No fim do dia, barriga vazia Não adianta fazer motim Na rua morta o cão latia E o descanso chegou enfim Então a servidão findou Num sono sem fim

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Só mais um pouquinho.





A mãe e a tia gorda puxaram o menino da piscina de plástico com a força de uma baleia. Da mesma baleia que ele conversava ao ser arremessado para o chão quente do quintal de sua casa.
Na piscina foi jogado assim que o pai abriu primeira cerveja do sábado. Era o sinal que fazia todos da família se refugiarem em seus abrigos anti bombas.
Rogério não reclamava. Logo entendeu que melhor a piscina encardida com apenas uma baleia azul descascada no canto direito e um caranguejo sem patas no esquerdo, do que o banheirinho escuro onde a mãe se trancava, e a garagem fedida onde a tia esperava o final dos ataques.
Todo ar do mundo armazenado, nariz tapado.Um, dois, três e já.A gritaria ficava para trás. Longe. Lá para onde Rogério se escondia e o silêncio fazia vento.
Era só abrir e fechar braços e pernas e ser levado por água e ar ao encontro do maior mamífero do mundo. E era azul. Azul claro como a água da piscina que vinha emprestada do tanque com roupa suja da vizinha. Era tão macia que dava gosto encostar na barrigona da baleia e lembrar do tempo em que sua vontade de aconchego cabia no barrigão do pai.
O pai tinha nome que começava com a mesma letra do nome do filho. Raul. Disso ele achava graça.
Quando foi para o primeiro ano da escola , rápido começou a juntar lé com cré. Descobriu que dava para brincar com os erres e erros de seus nomes.
Juntos, menino e pai podiam passar horas rindo, rararararararara ou passeando de carro, de rererererererere. Juntos.
Mas nunca dava tempo. Rogério não conseguia esperar o pai voltar tarde do serviço que tinha toda noite no bar do Miltão, para contar suas descobertas. Contou pra mãe. E ela ensinou outras e mais inesquecíveis brincadeiras com a letra R.
Raul ruim. Raul ridículo. Raul... como era bom o ruído da água rasgando as letras que rastejavam dentro da cabeça do menino como o caranguejo sem patas.
Rogério tinha pena do caranguejo. Já havia tentado levar lápis colorido para o fundo de seu mar e assim consertar tamanha judiação. Mas não deu certo. Entendeu que tem coisas que não tem conserto, mas não desistiu do amigo subestimado e subaquático.
De tanto olhar e olhar para o crustáceo deu conta de decifrar as artimanhas da vida em águas turvas e com ele mergulhava no mundo dos que existem graças a uma carapaça protetora acoplada a vida. Vida má. Vida marinha. Naquele sábado grudento, mesmo tão bem acompanhado, foi invadido pelo barulho de casa quebrando. Resolveu que flutuar seria perfeito para o momento.
Esticou o corpo como fazia com o elástico de seu estilingue. Barriga e rosto dentro d’água, abriu os olhos para ver o fundo de seu mundo e ficou. Ficou. Ficou.
Quando as mãos da tia gorda e da mãe agarraram seus braços, viu seus sub amigos estenderem um tapete de céu no fundo do seu mar. Não resistiu. Lá seria rei. Foi-se. Voltou de vez para o profundo de seu ser.

Como diferenciar o sonho da realidade?


Como diferenciar o sonho da realidade? Se alguém souber me avise porque eu quero acordar, me dar um beliscão seria inútil já que não consigo me mover, gritar? Mas que idéia idiota, minha boca não responde aos meus estímulos, na verdade meu corpo inteiro não me responde, somente meus olhos parecem estarem vivos e em alerta, minha audição também esta apurada, porém nada disso podia me ajudar.
Tentei me lembrar o que me fez ficar deste jeito, onde eu estava antes de acordar neste lugar, será que mais uma vez eu exagerara na bebida?
Mas que sensação era essa?  - O que estava me mantendo assim totalmente imóvel? – Que lugar é esse? Apesar de meus com olhos estarem bem abertos não enxergo nada a minha frente, meus olhos parecem cobertos por um véu de negritude, enxergo somente uma névoa densa e pesada, quase palpável se conseguisse mexer as minhas mãos. Além da névoa era possível sentir o azedume que tomava conta do lugar, um odor fétido tão forte que o sentia com meu paladar. - Mais que vontade de vomitar.
Eu sabia que não estava sozinho, não muito longe podia ouvir uivos de dor, gritos, ordens eram dadas a alguém que chorava desesperadamente.  – Deve ser outra vítima – pensei. Talvez isso seja um sequestro... É estranho, mas por um segundo ri, ri ao pensar no desapontamento dos sequestradores quando verem minha conta bancária, é capaz deles se comparecerem de mim, pode até ser que role uma carona para casa. Mas os choros da outra vítima me trouxeram de volta a realidade e minha vontade de rir foi embora junto com seu grito de dor. – Será que apanhara?
Calma, espere ... Ouço passos, mais do que passos alguém esta correndo em minha direção, mas quem?
Seja lá quem for, se aproximou ainda mais, seus passos ecoavam pelo ambiente, o que me fez pensar que talvez estivesse em uma caverna ou gruta, sei lá. Subitamente os passos cessaram, agora seja lá quem for me observava, lentamente o ser foi se aproximou até ficarmos face a face.
Pude sentir sua raiva, sua respiração era rápida e forte, pude sentir a sua raiva um ódio sem explicação. Acho que ficamos assim por cerca de uns 5 minutos.
Nunca uma sensação tão forte de impotência tinha me tomado, tal forma que minha respiração ficava cada vez mais lenta, inexplicavelmente aquele ser se personificou no meu medo mais profundo em um medo palpável e incontrolável. – Por quanto tempo mais essa angústia iria durar?
Sem aviso prévio um soco foi disparado em minha direção mais precisamente em meu estomago. Uma dor insuportável tomou conta de mim, mas do que uma dor era como se aquele soco me houvesse atravessasse a carne, sentir como se toda a energia do meu corpo tivesse me sido arrancada, meu corpo ficava mais pesado a cada instante, não suportei, tombei no chão, batendo tão forte de encontro a ele que minha dor só fez aumentar, desmaiei. Porém antes disso pude perceber que o ser se abaixou ao meu lado e me sussurrou alguma coisa, mas o que? Não consegui entender. A névoa já não parecia mais tão densa e pude ver que quem quer que fosse, agora se afastava lentamente.
Por favor, se tudo isso fosse um sonho eu só queria acordar...


Aline Sartori

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Gente,
Enfim, vou postar meu primeiro texto. Foi o que escrevi depois da primeira aula da Márcia. No dia não achei brilhante, mas apenas honesto. A cada aula, no entanto, estou percebendo como estou longe, mas bem longe mesmo, de algo que possa ser chamado de literatura. Mesmo assim, não mexi mais nele. O "problema" que me coloquei era escrever um conto infantil, o único gênero a que me arrisco. Aqui está ele.
Comentários e sugestões serão bem-vindos.


Dia de Finados, Que Alegria!

– Quantos dias faltam, mãe? – Isabella perguntou, ao acordar no domingo.
– Uma semana!
– Sete, então. Contando que hoje já está quase na hora do almoço, faltam só seis.
Essa conta fazia toda a diferença. Saber que o dia 2 de novembro estava próximo deixava a menina excitada de um jeito que só não era maior no próprio aniversário e no Natal. De 10 de setembro – quando fez 6 anos – em diante, a ideia tinha tomado conta da cabeça dela. Ia dormir pensando no feriado e acordava do mesmo jeito.
Isabella era uma menina sabida, muito sabida! Estava na pré-escola e era a única da classe que tinha chegado já sabendo ler. Quase um milagre lá pelas bandas onde morava, em que muitas crianças terminavam o segundo ano sem entender o que está escrito numa placa, num jornal, num livro. Como aprendeu é difícil dizer. Sozinha não foi. Mas também ninguém ensinou.
Toda noite, antes de dormir, a mãe da menina lia para ela. Não raro estavam nessa hora só as duas em casa porque o pai chegava tarde do trabalho. Ela fazia força para ficar acordada, esperando por ele, mas na maioria das vezes não conseguia: dormia antes do fim da segunda história. Às vésperas de datas importantes isso mudava. Demorava a pegar no sono, tamanha era a ansiedade, que por vezes se transformava em angústia. A vontade que chegasse o dia era tão grande que Isabella ficava com medo de alguma coisa ruim acontecer: alguém da família ser atropelado – que nem o moço da farmácia –, o pai sofrer um acidente, a mãe morrer. Nessas horas, fazia força para pensar em outra coisa e ficava com remorso por ter ideias tão feias.
Isabella pouco passeava. O orçamento era apertado, o pai não tinha carro. Viagem, nunca tinha feito. O mais longe a que já tinha ido era a cidadezinha onde o avô estava enterrado, a menos de duas horas de sua casa. Todo ano, no Dia de Finados, Isabella saía cedo com a mãe em direção à casa da avó, onde se encontravam com tias e primos e, todos juntos, iam para a estação pegar o trem. O plano era bem simples. Desembarcando no destino, iam a pé até o cemitério. Lá chegando, a avó, a mãe e as tias limpavam o túmulo, colocavam flores no vaso, acendiam velas e todos rezavam. Enquanto os adultos conversavam com parentes distantes, que iam lá visitar outros mortos que dividiam com o seu avô aquele endereço, ela e os primos corriam pelas vielas e, depois, se sentavam debaixo de alguma árvore para descansar. Terminado o ritual, todos iam para a praça em frente tomar lanche. Logo era hora de ir embora.
Cada pequena coisa desse dia, que se repetia anualmente, alegrava Isabella. A começar por acordar e sair de casa antes do amanhecer – e do pai, que ia mais tarde um pouco ao cemitério em que estava enterrado o outro avô, pertinho de casa. Ela e a mãe iam para o ponto de ônibus e lá ficavam, sozinhas, até que o Circular aparecia virando a esquina. Dentro, só o motorista e o cobrador. Essa pequena aventura deixava a garota amedrontada e orgulhosa: ela e a mãe eram muito corajosas!
Na casa da avó, outro contentamento: a família toda reunida, só esperando por elas. Aí, era só beijar cada um, pegar as sacolas com os lanches e fechar portas e janelas. Iam conversando animados. Crianças à frente, mães logo atrás dizendo: “Não corre!” “Espera na esquina!” “Não atravessa.” “Dá a mão para a Isabella.” Todos obedeciam e iam discutindo em que ordem iam passar pela porta “gira-gira”, uma espécie de catraca de ferro, que ia do chão até o alto e dava acesso à plataforma de embarque. O mecanismo era o avô dessas portas giratórias que existem nos bancos e sempre travam, obrigando as pessoas a tirar as chaves do bolso, o cinto da calça, as moedas da carteira. Chegando à estação, o combinado não valia e os primos se empurravam para ver quem passava primeiro. Caçula, Isabella sempre ficava por último.
No trem, além de poder andar para lá e para cá, ainda era possível viver uma sensação muito diferente: sentar de costas e ir vendo cada trecho do caminho até o destino só depois que ele já tinha ficado para trás. Assim que isso perdia a graça, a criançada mudava para os bancos que ficavam de frente para a locomotiva. Quando faltava pouco tempo para chegar, a maior das aventuras: mudar de vagão. Os dois passos que separavam as portas das composições se transformavam na ponte sobre um precipício.
A volta não tinha a mesma graça: o cansaço e o sono tomavam conta da menina e ela passava metade da viagem dormindo no colo da mãe. Ao descer do trem, era preciso pegar um ônibus até a casa da avó e outro até sua casa. De banho tomado, dormia feliz lembrando do barulhinho e do balanço do trem. No dia seguinte, ao abrir os olhos, vinha invariavelmente a pergunta:
– Mãe, quantos dias faltam?
Conhecendo bem a filha, ela respondia, de pronto:
– Cinquenta e um! – Começa, assim, a contagem regressiva até o Natal.
Oi turma,
Finalmente consegui postar meu poema móbile para vocês.
Se puderem comentar, agradeço muito.
Abraços,
Marina

Serenata



Corpo esguio
Ágil
Um cantador



Madrugada  adentro
Invade minha janela
 Espreita meu sono
Faz serenata
 Não me deixar dormir



Ronda meu espaço
Espia por de trás de uma fresta
Encontra-me a sonhar



A nota se repete
Fino e constante o seu cantar
Tento me esgueirar
Espantar meu torpor
Mas não quero acordar



Meu corpo ele toca
Começo a me virar
Um pé descoberto
Muitas marcas vai deixar



Mas mesmo sem forças
 Luto com a preguiça
Levanto da cama
 Pego a almofada
Quero lhe acertar



Ele é esperto
Usa de sortilégios para me enganar
Atrás da cortina
Em cima do criado mudo
Às vezes em meus cabelos
Quer se enrolar



O soneto continua
Girando pelo espaço
Não faz o mínimo esforço
Para disfarçar



Porém junto forças
Venço meu sono
Levanto da cama
 Só para lhe encontrar



Dessa vez não deu certo!
Não te acerto e volto a deitar
Mas mais esperta que ti
Uso um repelente e volto a dormir



Maldito pernilongo!

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Nu, mas com texto...


Amigos, quero confessar uma coisa: Tenho ido nu a nossas aulas. Ainda bem que não perceberam. Teria sido humilhante para mim, certamente ultrajante a vocês. Mas é essa condição de mendigo - não de exibicionista da praça - que me permite voltar a minha casa sem vergonha, toda segunda e quinta à noite, vestido com peças doadas por todos à volta.
Nesse tempo pequeno ainda - pequeno perto do que está por vir -, tive dois bons casos de como isso se dá:

1) Este conto abaixo fiz depois de uma das aulas da Márcia Fortunato, como o exercício sugerido de escrever e tentar se ver fora do corpo, entender como o ato ocorreu. O primeiro resultado do escrito dei para a Luana ler. E ela me fez sugestões preciosas, sobre trechos que poderiam estar mais bem amarrados; e apontou o que viu de valor. Pois ficou assim:



Depois da morte, uma vida
                                                                          Andre Argolo
                                                                          Pós-Formação de Escritores – turma 2012

Um bloco de concreto caiu do teto, sobre a mesa, junto com outros pedaços de cimento, gesso, tinta, menores, por toda a sala. Tudo quase ao mesmo tempo. Os óculos dele estavam na mesa, ao lado da máquina de escrever. Adorava os óculos. Comprou-os fazia quase vinte anos, numa loja indicada pela então já falecida esposa; óculos com aros dourados, nem exatamente redondos, nem muitos ovalados, do jeito que ela sempre havia dito que ficariam ótimos no rosto dele. Tomava cuidado, pois eram frágeis, mais pela armação do que pelas lentes – essas, troca-se mesmo, sempre, ao avanço da miopia e das outras doenças da vista (ou da velhice).
A mesa era um lugar seguro para os óculos desde que morreu o gato. O bicho era danado, subia em tudo. Quebrava copos, geralmente os vazios, aqueles esquecidos pelo sono, sabe? Dos que fazem companhia a um papel meio-escrito com uma história sem final, todos abandonados pela sedução da cama grande, antigamente de casal. O gato quase quebrou os óculos algumas vezes. Parecia ter ciúme do que mantinha o olhar do dono desviado dele, para os livros, jornais.
Pouco sobrou dos óculos, ao impacto do bloco maior de concreto, que caiu sobre a mesa, metade na máquina de escrever, de ferro; quicou barulhento e parou no solo, com  estrago já feito aos óculos do velho e outras coisinhas menos marcantes (ou irreconhecíveis, de destroçadas). A mesa não quebrou. Fiel, poderia chamá-la, como se um objeto pudesse ser, além de forte ou simplesmente bem-construído.
É a fantasia humana que dá às coisas personalidade. E talvez por isso doa ver os óculos do velho assim, esmagados… Não é de se pensar? Mesmo deformada, a armação dourada deixa claro o que ela foi. Talvez por isso, apesar de não servir mais ao propósito para o qual foi fabricada, possa ser chamada ainda de óculos, apenas acompanhada a partir do acidente por uma qualificação, praticamente uma nova profissão: Amassados. Ou inúteis - o pior adjetivo para um objeto.
Ou não são mais óculos esses metais dourados e retorcidos? Não são mais, porque não cumprem mais sua missão. Como o corpo no saco, que não seria mais o velho – “sim, pode levar”. Tiveram esses aros agora sem lentes traduzido quantas palavras para emoções, que aos olhos crus do homem eram uma neblina escura só?
Dor mesmo na alma o velho teria sentido ao saber de seus livros. Os livros devorados pelo fogo, antigamente pelos óculos, comidos pelo impacto do cimento compacto – o mundo das coisas têm sua própria, e poética de mau gosto, cadeia alimentar. Se não tivesse perdido a consciência, provavelmente morrido já, no momento da explosão, teria sido para ele terrível ver o fogo apagando as histórias que leu e relia frequentemente, com o prazer e a surpresa de quem nunca vê o mesmo pôr do sol, ainda que na mesma praia.
O fogo, pior que o concreto na armação dourada. Seria preciso mais investigação para saber a ordem dos acontecimentos. Mas que o fogo age por mais tempo do que a queda do concreto, isso é fácil de afirmar. O que não se pode assinar até agora é que os óculos foram esmagados antes de os livros começarem a queimar. A serventia da informação é que se pode discutir. O que importa, afinal, se tudo virou nada, e de ninguém? O inútil é bem mais frequente em relatórios do que na Literatura.
Eram duas prateleiras de madeira, cheias do chão a quase o teto, com muitas publicações, novas e antigas. Mais antigas, velho que era o tutor delas - pois que nunca se dizia dono de um livro. Mesmo que fosse, o fogo o teria roubado sem piedade. E mesmo autodenominando-se tutor, o sentimento de perda provavelmente não teria sido menor do que ao dono assumido do acervo.
Companheiros há tanto tempo, na organização por gênero que o homem fazia, os livros traíram-se uns aos outros, ao serem combustível do que os matava. Tinta, papel, os elementos químicos que nos permite lê-los, folheá-los, dando ao fogo mais força, tornando gás ilegível as anotações de pensamentos ao lado de trechos grifados, anotações que tornam cada exemplar, em meio aos milhares de cada edição impressa, único, irrecuperável, perdido para sempre na história apagada.
Os bombeiros chegaram a tempo de controlar as chamas ainda restritas às estantes, prestes a avançar sobre tudo mais: talvez até outras casas, lar de outros livros, lidos por outros óculos, de outra gente, com suas próprias histórias, escritas ou não adiante, ao futuro, sem proteção adequada, comburentes de si próprios. Já ouvi chamarem isso de ironia. Eu aqui, imaginando a vida antes da morte que perito para a polícia, chamo essa fragilidade escondida sob suposta inteligência de tristeza.

Baseado no primeiro curta do filme memória de quem fica, sobre atentado contra judeus em Buenos Aires, Argentina, em julho de 1994.


2) O outro caso foi na última quinta, por antes e o depois da intensa aula do Ricardo Azevedo. Antes porque pedi ao colega Jaime que lesse uns poemas meus. E as breves observações que fez tinham tanto sentido para mim, que já abriram meu horizonte de criação (mais tarde, gentilmente, ainda fez-me mais boas observações por escrito, pelas quais agradeço imensamente). Disse algo que não vinha percebendo com clareza, apesar de quase óbvio (Nelson Rodrigues dizia que normalmente só os gênios enxergam o óbvio): havia muita objetividade na poesia. E durante a aula, com os conceitos passados pelo Ricardo, a explanação sobre como funciona a Metonímia e a Metáfora, tudo expandiu minha vontade de testar linhas diferentes das que vinha traçando. Num primeiro exercício, deu nisso:


Pragmatizontemente

Peguei meio metro de linha
Desfiada de blusa velha
E cozinhei na pressão:
Meia hora, o bastante
Para traçar um horizonte.

Estiquei ali na janela,
Bem na hora do pôr do sol
Pensei até em filmar
Distraí-me numa canção
Depois vi um passarinho
Voar com a linha no bico
- Achou que fosse minhoca,
ou quis dar-me uma lição?

Tentei novamente.
Agora um pedaço de arame
Farpado como cerca e eu, gado
Feri duas mãos na tarefa
Sujei a parede de sangue
Ao pendurar o belo horizonte.

Quando veio a lagartixa
Cansado, já nem via o traçado
Carregou em silêncio o arame
Sem ligar para o farpado
Bicho gelado da noite
Será que engoliu meu horizonte?

Decidi ensopar a ciranda
Decidi pelo macarrão
E na mesma panela da linha
Pus tomate, sal e sabão
A receita é de família
Ingrediente, o que der na telha
                     o que houver à mão.

Alinhei a massa na mesa
Direitinho, montei um cordão
Encaixei a pontinha na boca
Suguei pena, poesia, orgulho
Fazendo, sabe, aquele barulho?
Se era para terminar digerido
Que terminasse cá, comigo
Meu novo horizonte enrolado
Meu próprio bucho estufado.


Antes desse terrível final, havia escrito um pior! Mas foi divertido. Sabe aquele negócio, ‘está um horror, mas eu gostei?’, pois gostei mesmo - menos do resultado, bem mais do exercício, de escrever menos objetivamente; escrever uma coisa querendo dizer outra, simploriamente dizendo.
Sinto muito, mas assim está dando certo para mim: sim, continuarei a ir nu toda aula.

Grande abraço para todos, até segunda!

Andre/.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Ombro com espinhos Marina Bueno Cardoso


Ombro com espinhos

Marina Bueno Cardoso

Drica, 32 anos, entra na sala de Mauro Landin, tatuador famoso da Rua Augusta. Ele estranha, ma no tropo. Ela vestia um tailleur pêssego, com sandália de salto fino e bolsa de madame,com correntes douradas. Pensou, está procurando alguém para fazer uma borboletinha no pescoço. Despachada, já disse a que veio: adoro temas mexicanos e orientais, acho que é a pedida para meu momento, vai fazer a diferença. Aonde quer tatuar, você quer o álbum com os motivos para escolher? Não, prefiro a surpresa. Onde posso tirar a roupa? Para surpresa de Mauro, ela tinha tatoos desde a virilha até o busto, com temas fortes, daqueles inspirados em motivos da tribo maori, da Nova Zelândia. Quando perguntou porque não faria algo nos braços, pernas ou pescoço ela foi ao ponto: Sou juíza, você já imaginou eu ter que entrar no Fórum no verão, toda tatuada,vai ser um choque. Prefiro exibir para quem eu quero,  as tatoos são para meus momentos especiais, ou quando tiro a roupa para meu namorado, ou quando vou nadar. Faço minha coleção secreta para poucos. No ano passado fiz aos poucos a parte da frente do corpo, queria me ver com as marcas que foram para celebrar minha vitória de comprar minha casinha nas montanhas. Agora virou fixação. Quero alguma surpresa no meu ombro esquerdo. Ótimo, vamos lá? Seus amigos gostaram? Ela, já deitada de bruços falou que foi aquela coisa, teve gente que amou e poucos, como minha mãe, odiou, achou nojento, ficou perguntando como seria quando tivesse a idade dela. Mas é absurdo, eu tive que aguentar pai fazendo coleção de cinzeiros roubados de restaurantes, uma coisa medonha em cima da mesa da sala; meu irmão quando moleque tinha mais de cinqüenta camisetas de times de futebol e fez minha mãe encomendar um armário com porta de vidro transparente porque ele gostava de ver, e ela, minha mãe tem uma mania de colecionar santos de gesso de loja de umbanda em cima da geladeira. Gozado, ela é muito religiosa? Perguntou ele enquanto começava a fazer o desenho. Sei lá, mania dela. Frequenta centro espírita, que não cultua santos mas seu pinguim de fraque recepciona Iemanjá, Santo Antonio, Santo Expedito, Nossa Senhora da Conceição,  Nossa Senhora Aparecida, ufa, até São Jorge. Dá-lhe de acender velas rodeadas de mel, o  Buda que e está sobre arroz e São Cosme e Damião num pratinho cercado de pipoca. Imagine, tem até um Cristo Redentor rodeado de asas de borboletas azuis, pode coisa mais...menos, não é mesmo? Ela comete este altar kitsch, que eu agüentei por 25 anos, enquanto morei com ela. Agora ela não pode saber que minha coleção existe, coberta por panos de roupa careta; ao menos não agrido ninguém, e melhor, tatoo dá para carregar para qualquer parte do mundo, não ocupa espaço, não é mesmo? falou dando uma respirada profunda, está terminando? Só falta finalizar. Quero ver só quando terminar. Você me rabiscando com essa sua engenhoca e eu fico a imaginar o que vai sair. Vi trabalhos lindos seus com caveiras, típico mexicano, será? Caveira com rosas na cabeça... e com a boca mordendo uma rosa com espinhos .Viu pelo espelho. Liiindo, delicado e feminino, bem no omoplata que quando a gente mexe, mexe junto. Adorei Landin, agora minhas costas carregam todo o charme e malícia mexicana!


Subversão


Não adaptado a elementos nocivos
Que divagam incólumes a outrem
Sigo manifestando o meu desdém
Contra aqueles que me são lesivos

Lanço em ti meus atos explosivos
Não serei mais um infeliz refém
Fartei-me de teu bronco nhenhenhém
Redijo versos protestativos

Pelo expurgo da dor


A maldição de ter que viver a cada dia
Supera a dor da dúvida e do delírio.
A frivolidade é a carta magna do meu curso,
E Morfeu me acompanha no devaneio
Precedido pela ressaca apaziguadora.

Martírio desatinado e vagaroso
Que posterga o labor da velha soturna.
Ela se regozija com o meu desalento,
Enquanto o Sábio ri sarcasticamente
Da minha rota camisa-de-força.

Os Cisnes trazem de volta o desespero,
Seguindo seu curso em um lago de sangue.
Pálidos espectros dançam ao meu redor,
Rindo e bradando a maldita canção.
Os velhos amigos chacais estão de volta!

Cada segundo parece urgir por outubro,
Quando todas as dores serão levadas e
Expurgadas de almas carentes e vívidas.
Momentos de plenitude que instilam vida
E volvem o sorriso aos filhos de Dioniso.

Onírico


Beijar-te...
Ouso-me conjeturar a respeito
No escopo frio da ilusão mais doce
Jaz o encanto que me alegra viver
E em meio a finos arroubos de amor
Eis que se torna límpido o espelho
Que reflete a onerosa realidade
De ter que viver sem você.

Qualquer ensejo de realidade
Que me arranca do doce devaneio
Traz de volta todo o austero fardo
De ter que suportar mais um dia
Sem você.

Indoméstico


Iniciando mais um desesperado verso sorumbático
Incito impropérios contra o colapsante mundo apático
Involuntariamente, devido ao hostil processo traumático
Instigado a todos forçosamente por um ditame patético
Instinto, diz o reacionário; injusto, diz o cáustico
Incauto quem fecha os olhos diante do regime caótico
Incendiando o potencial humano de modo despótico

"Fúria amordaçada"


Despido de qualquer roupagem hierárquica
Sinto-me absorto em um único intuito
Aquele que me guia desde minha tenra infância
A revolta apaziguadora que acalmava minh’alma
A rebeldia insolente que construiu meu percurso
A raiva inconsequente que tomou um sentido
Que aos poucos foi absorvendo todo o meu ser
Num gesto inerente de pura contestação
Nem tão aprazível quando alguns almejavam
Tampouco tão maleável quanto outros impunham
Todo o ódio lhes foi incutido pelas entranhas

Desconfiado, ressabiado, reservado
Antissocial, amoral, cético
As regras líricas rejeitam os adjetivos
Eu as expurgo e insisto em adjetivar
Abaixo a elitização da arte
Contra a estética burguesa
Tudo pela livre expressão desatinada!

Os sabores das lembranças


Em minha adolescência, como a maioria das garotas, eu tinha sonhos: casar, ter filhos, ser bem sucedida e, principalmente, aguardava ansiosa pelo grande encontro com meu príncipe encantando e pela tão esperada primeira vez. Confesso que meus almejos não eram nada criativos e não passavam de ideais pequeno-burgueses juvenis. Ora, mas eu não passava de uma adolescente comum de classe média.

O casamento não aconteceu, os filhos não vieram, o conceito de vida bem sucedida já é bem relativo para mim hoje em dia e os príncipes e vagabundos encantados surgiram tão rápido quanto sumiram do meu caminho. Alguns até eram bons rapazes, mas custei a enxergar isso e hoje eles levam suas vidas fora do meu alcance. Talvez tenha sido excesso de autodefesa. Talvez... De qualquer forma, eu acredito que tenha sido melhor desta forma. Ao menos para eles...

É incrível como algumas passagens de nossas vidas podem influenciar pelo resto de nossa história. Parece que o gosto amargo nunca sai da boca; as tristes lembranças nunca vão embora; a ferida nunca se fecha. O câncer nunca morre! No entanto, as doces lembranças vão se apagando, se apagando, até que elas deixam de ser tão doces ou até que deixam de ser lembranças. Já não me lembro mais do sabor do algodão-doce que eu comia nos parques de diversão, não me lembro da sensação do vento batendo no rosto quando eu andava de patins no parque, não me lembro do nome de nenhuma colega ou professora da escola e não me lembro de como era a nossa casa. Simplesmente não me lembro.

Mas eu me lembro perfeitamente da minha primeira vez. Lembro-me como se tivesse sido ontem, como se tivesse ocorrido há alguns minutos. E também me lembro do vazio interminável que senti logo em seguida. Engraçado, me lembro do vazio, mas não me recordo de muitas coisas concretas. De concreto, para mim, só existem duas sensações: ódio e dor.

A primeira vez não teve nada de cor-de-rosa, não foi romântica e nem de longe foi como eu esperava que fosse. Mas certamente foi inesquecível. Amargamente inesquecível. Nunca vou me esquecer daquela barba nojenta roçando o meu pescoço, o bafo pungente de uísque e aquelas ameaças que, por vezes, vinham em tom consolativo. Tais memórias custaram a deixar de me perseguir incessantemente, mas frequentemente retornam de maneira aterradora.

Hoje não tenho mais sonhos. Porém, o maior deles eu realizei. Espero que você esteja queimando no inferno, papai! Inegavelmente isso me deixa mais feliz e tranquila.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

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