sexta-feira, 22 de junho de 2012


                 Bloqueio crônico                                                             

         
         O relógio do computador marca 19 horas de um domingo. Somente 24 horas me separam da difícil tarefa de entregar a primeira crônica da minha vida. Sento-me para escrever, mas as palavras escapam cada vez que as jogo para dentro do monitor.
         Fico olhando o cursor piscando e barrando cada letra. Ele martela a tela branca uma vez por segundo como se estivesse me desafiando: - E aí? Vamos nessa? Esse pisca-pisca tentando dar um curso na minha conversa com o teclado me enerva sobremaneira.
         A cada letrinha que entra na tela, ele desaparece e surge novamente, como que a cobrar de mim: - A próxima!...A próxima! E assim a próxima palavra acaba ficando cada vez mais distante. Arrumo minha coluna no assento, torço o pescoço para um lado e para o outro, duas vezes seguidas, para liberar a tensão nos meus ombros. Aceito o desafio sim, seu filho da mãe!
         Sigo clicando e corrigindo os erros de concordância e os de digitação cada vez que aparece um ou outro.
         E esse maldito cursor que não para. Olho para o teto buscando a continuidade das frases e quanto volto a olhar para o monitor, lá está aquela barrinha, ou melhor, aquela verdadeira barreira preta piscando e bloqueando minha imaginação. 20 horas!
         Uma hora depois e mais duas torções com direito a uma cruzada das pernas em xis na cadeira, bato diversas vezes na tecla de tabulação tentando afastar a barra negra insistente. Não adianta! Só vou acumulando espaço pontilhado na tela branca e a mente continua em bloqueio total. E a ideia para a crônica? Vai sair ou não?
         Saio da sala para clarear a mente. Vou até a cozinha tomar um suco e, para meu desespero, o relógio de lá também não deixa esquecer: 21horas.
         Volto para o computador, sento e encosto na poltrona de couro preto, tão preto quanto o teimoso cursor.
         Continuo no desafio. Se não bastasse aquele piscar intermitente na telinha, o relógio do meu aparelho celular também me cobra rendimento: 21h30min: - Essa crônica sai ou não sai?
         Sai sim!
         Esse bloqueio, que acontece quando corro contra o tempo, é crônico em meus trabalhos de escrita. Sou uma principiante das letras que tem uma meta, uma metalinguagem a longo prazo. Ah! Como gosto desse termo longo, lon-go. Longo prazo- Sim! Definitivamente, é disso que eu preciso. De um prazo mais longo!...
         Maldito cursor!

Punho cerrado

Estou me cagando para a poesia
Ou para ‘aquela’ poesia
Não me interessam as loiras de Copacabana
Tampouco o rouxinol, a palmeira e a banana
Foda-se o rigor da forma e o padrão da escola
Eu quero mesmo é a autêntica arte do povo
A poesia tapanacara feita por necessidade
poço de autenticidade
carregada de acuidade
Como comer, respirar, cagar e trepar
Aquele que vomita as frustrações e inquietudes
             os olhares tortos e suas virtudes
   que não dão conta de suas vicissitudes
Poesia que não quer massagear o ego e ocupar o tempo
Satisfazer o vazio entre uma compra e outra
Para mostrar às amigas junto com a bolsa nova
Não quero poesia bossa-nova
Versos de praia ou de shopping
Quero mesmo é a fúria da rua
 ouvir a voz do gueto
 ver a cara do gato-preto
 punho cerrado letal como cianureto

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Haicais de inverno

01
Um sopro gelado
E assim vejo novamente
A minha São Paulo

02
Narizes vermelhos
Entre bochechas rosadas
Declaram o frio

03
Botas, cachecóis,
Luvas, gorros e casacos
Todos passeando

04
Tantos agasalhos
Colorem a paisagem
Da estação urbana

05
Cai a temperatura
Metade do ano se passou
Seguimos em frente

A mudez do dia a dia

É a mesma história de sempre: dar aquela procrastinadinha com o “Soneca”, repetir, tirar a TV do stand by, expurgar com pasta os resíduos de alimentos da boca, desodorante, roupa quente e sociável, carteira, celular, moleskine, caneta, copo de leite. Ônibus, outro ônibus, trânsito, caminhada. Agência. “Bom dia.” Computador. Água, café. Fone de ouvido, e-mail, zapeada na net. Escrever. Job. Escrever. Revisar. Ligação pra namorada. Almoço. Livraria. Caminhada. Agência. E-mail, escrever, água, revisar, job, revisar, café, escrever, job, água... Outra ligação pra namorada. Caminhada, ônibus, ônibus. Casa. Petisco. Kung fu. E-mail, redes sociais. Banho. Namorada. Cerveja, jantar, filme, livro. Namoro. Sono.


Caceta! É como a construção de um grande prédio que teima em não se concluir. Um ritmo infernal que martela sua cabeça sem que sobre espaço para intervenções imaginativas. A mesmice satura a criatividade e também molesta a afinidade. Nossos umbigos passam a ser a única preocupação na receita de bolo que se torna o dia a dia. Mas de vez em quando a gente acha uma nota graúda no chão pra borrifar um pouco de cor ao monocromático ritual diário. E ainda bem que excentricidades cósmicas como essa invadem nosso ostracismo particular para propiciar o parto de uma crônica bastarda.

Em São Paulo, com suas intermináveis fileiras de veículos que parecem veias dum colestérico sistema circulatório, passamos muito tempo dentro de ônibus e demais conduções, nos obrigando a ser criativos pra dar um chapéu no descontrole. Livros, revistas e a penca de entretenimentos disponíveis nos celulares são as opções mais apreciadas no hirsuto gato vira-lata que é o trânsito da City. Como paulistano, também costumo recorrer a essas opções, mas quando o busão está lotado demais ou não tenho algo pra ler, fico observando as pessoas enquanto garrancho coisas em meu confidente caderno de notas.

Numa dessas situações-puta-que-o-pariu, tive a felicidade de presenciar uma ruidosa discussão entre dois surdos. E entendam que o “ruidosa” aqui não se trata de ironia, metáfora ou qualquer tipo de figura de linguagem. Foi utilizado na plena acepção da palavra.



Eu era apenas mais uma figurinha desgastada dentro daquele ônibus, absorto numa leitura morfínica quando saí do meu costumeiro transe ao ouvir alguns sons semelhantes a tapas. Parecia quarto de puteiro. Desviei minha atenção por achar que se tratava de uma briga e estiquei o pescoço pra tentar saborear um pouco da confusão. De fato era uma briga, ou melhor, uma discussão, mas sem falas. Um casal trocava injúrias por sinais, diga-se, bastante agressivos. Eles gesticulavam estapeando suas próprias mãos, pernas, peito e todas as formas de percussão corporal que estivessem ao seu alcance para expressar descontentamento e agressividade, tudo somado ao frenético bailado manual da Libras. Os estampidos ricocheteavam por todo o ônibus e despertavam a curiosidade coletiva. O casal se sentou ao banco bem à minha frente. Fechei meu livro em definitivo, sem remorso.

Para aproveitar na íntegra a oportunidade que recebi, saquei moleskine e caneta e dei início aos parcos registros. Foi quando a discussão arremeteu para uma hostilidade quase assustadora. E, graças ao deus dos cronistas, com uma ajudinha dos milhares de carros à frente, eu era um espectador sentado ao camarote com tempo e ferramental suficientes para não deixar nada escapulir por entre os dedos.

Os dois exaltados não se contiveram e iniciaram uma nova etapa em sua discussão, desta vez apimentada por uma espécie de verborragia cacofônica, ou cacofonia verborrágica, cheia de grunhidos gemidos ganidos grasnidos urros bufos blateros bramidos arrulhos mm bha puu thãã gha khy. Tentativas desesperadas de verbalizar impropérios dos mais cabeludos que aqueles deficientes auditivos eram incapazes de lançar. E nem me venha com discurso politicamente correto, irado leitor, pois também não vejo graça na deficiência dos outros. Mas a situação toda não poderia deixar de receber a devida atenção pela sua originalidade, ao menos para um leigo em acaloradas discussões entre surdos.

A mulher era sangue nos olhos. Toda a fúria do mundo se via naquela vermelhidão capaz de amiudar seu companheiro, que se encolhia entre a besta-fera e a janela. O ímpeto de antes agora dava lugar a um camundongo acuado enquanto a felina prosseguia com seu solo percussivo e a cantoria tribal. O bumbo corpóreo deixava pálido o tácito rapaz, pávido pelos tapas que soavam como o boom de uma bomba.
O clap pam tum bam paf bum pow era tão espesso que dava pra cortar com uma faca. “Essa porra vai dar merda já já!”, pensei. O rapaz disse algo com as mãos e a o ódio puro concentrado desceu antes deles. Presentearam-se com olhares peludinhos, ela deitou a cabeça no ombro dele, ganhou uns afagos, puxaram a cordinha e foram perseguidos pelas janelas atônitas enquanto seguiam pela calçada feito folhas no outono.
Testemunhei a ânsia por falar aquilo que todos querem calar. E eu ali, mudo diante daquilo tudo, me pus a tagarelar pela ponta dos dedos. Resultado: uma crônica capaz de ocupar seu tempo.

O homem de palha


O palhaço não tinha uma casa, não tinha família, nem amigos. Não tinha conta bancária, nem um automóvel, tampouco um telefone celular. Nada de computador, nem uma bicicleta, sequer óculos escuros. Máquina fotográfica? Ele não tinha. Camisa de time? Também não. Anel de prata? Tsc tsc. Necas de e-mail, Facebook e MSN. Isqueiro ele não possuía, nem boné, squeeze, calculadora. Nunca teve um MP3 player ou um piercing. Entre seus pertences também não constava pochete, relógio ou barbeador elétrico.
Mas ele tinha um kit de maquiagem. Não era aquelas coisas, mas dava pro gasto. E pintava sorrisos em seu rosto. Não ficavam lindos como os do Piolim ou do Arrelia, mas a molecada gostava. Nem todos, alguns. Servia pra esconder a feição que não era tão agradável. Feio? Sim, mas não horrendo. As marcas da vida eram o problema. Preocupação, tristeza, saudade, frustração. Ô vida amarga! Só mesmo com muita cachaça pra aguentar. E esse era seu passatempo preferido. Mas quando botava a máscara, saía de cena o homem de palha. Daí ganhava coragem.
Para encarar o mundo.
Gostava de fazer os outros sorrirem, apesar que nem sempre dava certo. Mas mantinha o empenho em cumprir a profissão que havia escolhido. Fazer rir não é tão fácil quanto parece, pô! Preocupação. Tristeza. Saudade. Frustração. Isso arranca à força a vontade de rir de qualquer um!
Quando era pequeno, o avô pintou seu rosto. Um dia decidiu reproduzir a pintura. Tomou pra si, pro resto da vida, fizesse chuva ou sol. O avô bateu as botas. Ficou com as botas dele. E também com as roupas, largas pelo excesso de massas: pães, macarrão, porpeta e toda aquela gostosura italiana. Fartura que lhe rendeu seus uniformes de trabalho.
Ele também tinha um diário. Velho, arreganhado, acalcanhado, amarfanhado. Amarelado. Nele registrava o dia a dia e as tentativas de fazer sorrir. E foi nele que escreveu a história do circo onde morava. Ô cirquinho chinfrim do cacete! As lonas tinham buracos do tamanho de sua boa vontade. O picadeiro estava em péssimo estado. E a arquibancada? Mirrada, miúda, minusculinha. E mesmo assim nunca ficava lotada. Só dava um ou outro gato pingado. Falando em gato... Eram os únicos animais que habitavam o circo, vindos da rua, sempre rodeando em busca de comida. O ambiente era decadente e a bonança já não comprava ingresso há tempos. E não se tratava de Bonanza, a mulher barbada. Essa aí a pneumonia levou. Coitado do seu marido. Aaron, o Anão. Destemido feito um... Galo?! Ficou num estado de dar dó.
Mas palhaço que é palhaço não desiste fácil. A lagriminha pintada no rosto serve pra lembrar. Tanta coisa já passou... O sorriso ainda é maior! Às vezes o nariz vermelho pesava, mas agora ele tinha amigos. Feios, sujos e, alguns, malvados. Preocupação-tristeza-saudade-frustração faze um mal danado. Mas eram sua família. A única que tinha. Não era uma família que esbanjava exemplos. Nem todos eram lá muito queridos. Marauder, o Mágico, vivia recluso com cara de boldo. Sorrateiro, ilusionista, trapaceiro. Só pensava em si. Da cartola só tirava benefício próprio.
O circo não aguentava o peso da própria tenda. Estava prestes a desabar. Era difícil saber por quanto tempo mais resistiria.
Preocupação. Até quando?
Tristeza. O que será de nós?
Saudade. E pensar que faziam filas enormes pra nos ver.
Frustração. Ninguém mais dá bola pra circo!
Ainda assim, o palhaço mantinha o sorriso. E está tudo lá, registrado no diário.
Na capa:
ESPERANÇA

domingo, 3 de junho de 2012

Eu só queria tirar a penteadeira do quarto.






Quando a conversa começou, a penteadeira estava longe, bem longe dali.
Ficava exatamente na frente da cama do casal. Não era usada como tal. Era um móvel antigo, modelo Patente. Em cima do tampo, agora de vidro, desfilavam todos os santos-dela e budas-dele. Eram assim, complementares.
Naquele dia estavam na casa que construíram e elegeram para ser o refúgio. Dos dois. Juntos. Ao menos de corpo.
Jogados na sala da lareira, sentiam-se tão vazios que não sustentavam nem o fogo que teimava morrer. Morreu. E eles quase mortos, nem repararam. Estavam imersos numa banheira de vazio.
Ela bebia vinho tinto numa das dezenas de taças de cristal levemente rachadas. Não corria risco, sabia exatamente onde colocar os lábios para não cortá-los. Só não sabia, nunca soube, onde colocar as palavras que cortavam e insistiam em sair rasgando de sua boca.
Pra evitar o pior, escolheu um assunto desconexo, fachada de sua dor.
Ele começou a dedilhar as cordas novas do violão. Ele sempre usava esse escudo para se proteger do que vinha dela.
Deixou-a falar, se enroscar, tropeçar e cair na velha armadilha que armava a cada confronto. O silêncio. Velho e imbatível silêncio.
Se ainda fumasse, seria ao momento de se arrastando, sair à procura de um cigarro, acendê-lo, e voltar ao lugar de origem. Isso serviria para checar se ainda estava viva. Não fumava mais. Menos mal. Menos culpa. Menos margem para manobrar o desespero que sentia esquentar seu peito. Ou seria o vinho?
O que seria não importava. O fato é que lá estava ela de novo, encharcada de tristeza quente, e desarmada. Sua última proteção era a frase úmida que de tempo em tempo escorria de sua boca, eu não vou brigar com você, não vou.
Resistência curta. Desmoronou. Com a mão direita sobre o rosto começou a verter lágrimas ardidas. Exausta levantou-se, pegou a cachorra que dormia em seu colo sem se importar com o que acontecia de humano entre aqueles dois humanos e falou, e aí, vamos dormir?
Ele devolveu o que considerou quase uma ironia com um seco não.
Melhor assim, pensou. Seguiu sozinha para o quarto que ficava separado da casa. Passou pelo frio atrevido, pela chuva fina, pela escuridão apertada e depois de subir os mais longos quatro degraus de que se tem notícia pelas bandas da Serra da Mantiqueira, alcançou a cama.
Se dependesse dela, só acordaria quando conseguisse finalmente explicar que só queria mesmo era tirar a penteadeira do quarto.