quarta-feira, 20 de junho de 2012

A mudez do dia a dia

É a mesma história de sempre: dar aquela procrastinadinha com o “Soneca”, repetir, tirar a TV do stand by, expurgar com pasta os resíduos de alimentos da boca, desodorante, roupa quente e sociável, carteira, celular, moleskine, caneta, copo de leite. Ônibus, outro ônibus, trânsito, caminhada. Agência. “Bom dia.” Computador. Água, café. Fone de ouvido, e-mail, zapeada na net. Escrever. Job. Escrever. Revisar. Ligação pra namorada. Almoço. Livraria. Caminhada. Agência. E-mail, escrever, água, revisar, job, revisar, café, escrever, job, água... Outra ligação pra namorada. Caminhada, ônibus, ônibus. Casa. Petisco. Kung fu. E-mail, redes sociais. Banho. Namorada. Cerveja, jantar, filme, livro. Namoro. Sono.


Caceta! É como a construção de um grande prédio que teima em não se concluir. Um ritmo infernal que martela sua cabeça sem que sobre espaço para intervenções imaginativas. A mesmice satura a criatividade e também molesta a afinidade. Nossos umbigos passam a ser a única preocupação na receita de bolo que se torna o dia a dia. Mas de vez em quando a gente acha uma nota graúda no chão pra borrifar um pouco de cor ao monocromático ritual diário. E ainda bem que excentricidades cósmicas como essa invadem nosso ostracismo particular para propiciar o parto de uma crônica bastarda.

Em São Paulo, com suas intermináveis fileiras de veículos que parecem veias dum colestérico sistema circulatório, passamos muito tempo dentro de ônibus e demais conduções, nos obrigando a ser criativos pra dar um chapéu no descontrole. Livros, revistas e a penca de entretenimentos disponíveis nos celulares são as opções mais apreciadas no hirsuto gato vira-lata que é o trânsito da City. Como paulistano, também costumo recorrer a essas opções, mas quando o busão está lotado demais ou não tenho algo pra ler, fico observando as pessoas enquanto garrancho coisas em meu confidente caderno de notas.

Numa dessas situações-puta-que-o-pariu, tive a felicidade de presenciar uma ruidosa discussão entre dois surdos. E entendam que o “ruidosa” aqui não se trata de ironia, metáfora ou qualquer tipo de figura de linguagem. Foi utilizado na plena acepção da palavra.



Eu era apenas mais uma figurinha desgastada dentro daquele ônibus, absorto numa leitura morfínica quando saí do meu costumeiro transe ao ouvir alguns sons semelhantes a tapas. Parecia quarto de puteiro. Desviei minha atenção por achar que se tratava de uma briga e estiquei o pescoço pra tentar saborear um pouco da confusão. De fato era uma briga, ou melhor, uma discussão, mas sem falas. Um casal trocava injúrias por sinais, diga-se, bastante agressivos. Eles gesticulavam estapeando suas próprias mãos, pernas, peito e todas as formas de percussão corporal que estivessem ao seu alcance para expressar descontentamento e agressividade, tudo somado ao frenético bailado manual da Libras. Os estampidos ricocheteavam por todo o ônibus e despertavam a curiosidade coletiva. O casal se sentou ao banco bem à minha frente. Fechei meu livro em definitivo, sem remorso.

Para aproveitar na íntegra a oportunidade que recebi, saquei moleskine e caneta e dei início aos parcos registros. Foi quando a discussão arremeteu para uma hostilidade quase assustadora. E, graças ao deus dos cronistas, com uma ajudinha dos milhares de carros à frente, eu era um espectador sentado ao camarote com tempo e ferramental suficientes para não deixar nada escapulir por entre os dedos.

Os dois exaltados não se contiveram e iniciaram uma nova etapa em sua discussão, desta vez apimentada por uma espécie de verborragia cacofônica, ou cacofonia verborrágica, cheia de grunhidos gemidos ganidos grasnidos urros bufos blateros bramidos arrulhos mm bha puu thãã gha khy. Tentativas desesperadas de verbalizar impropérios dos mais cabeludos que aqueles deficientes auditivos eram incapazes de lançar. E nem me venha com discurso politicamente correto, irado leitor, pois também não vejo graça na deficiência dos outros. Mas a situação toda não poderia deixar de receber a devida atenção pela sua originalidade, ao menos para um leigo em acaloradas discussões entre surdos.

A mulher era sangue nos olhos. Toda a fúria do mundo se via naquela vermelhidão capaz de amiudar seu companheiro, que se encolhia entre a besta-fera e a janela. O ímpeto de antes agora dava lugar a um camundongo acuado enquanto a felina prosseguia com seu solo percussivo e a cantoria tribal. O bumbo corpóreo deixava pálido o tácito rapaz, pávido pelos tapas que soavam como o boom de uma bomba.
O clap pam tum bam paf bum pow era tão espesso que dava pra cortar com uma faca. “Essa porra vai dar merda já já!”, pensei. O rapaz disse algo com as mãos e a o ódio puro concentrado desceu antes deles. Presentearam-se com olhares peludinhos, ela deitou a cabeça no ombro dele, ganhou uns afagos, puxaram a cordinha e foram perseguidos pelas janelas atônitas enquanto seguiam pela calçada feito folhas no outono.
Testemunhei a ânsia por falar aquilo que todos querem calar. E eu ali, mudo diante daquilo tudo, me pus a tagarelar pela ponta dos dedos. Resultado: uma crônica capaz de ocupar seu tempo.

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