A casa do russo
O russo pensou numa casa
de letras russas, estacas
paredes, pilares,
baldes de frases,
tirados de um livro
de ói ou de évisqui.
O russo acha que a letra é de
barro.
Lápis de lama, chão
Descalços olhos às nuvens.
Não há cimento
Palavras são de encaixe:
Crime, castigo;
Firmeza, ilusão.
De barro e papel,
uma casa de estantes.
Pesados romances e poesia.
Uma casa de instantes,
em longas leituras
sem breve chuva na previsão.
O russo sorri sua casa de barro.
Quando viveu em outra mais firme,
era de cuspe, engasgo,
sapos, sucos gástricos
de merda, tinta branca,
galhos e frases
e pensamentos contrários.
Mas aí choveu.
E era de outra língua a água
E a casa do russo caiu
E feriu-se gravemente
E sangrou dois alfabetos russos
E não morreu por pouco:
Faltaram palavras (em português).
Uma casa caída de barro, do barro
se refaz.
E as letras, arquitetura aos
cacos?
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O processo de criação desse poema
A primeira vez
que li a frase,“Bakhtin considera a obra literária como produto da
transformação sistemática de um conjunto verbal no todo arquitetônico de um
evento esteticamente acabado” senti que
acabado estava eu. Felizmente, depois da aula sobre o assunto, entendi bem
melhor o que o russo quis dizer. Mas, naquela primeira leitura, havia
compreendido tão pouco, que me restou rir, de mim; rir do tombo de bunda, que é
a incompreensão. E riu a Ângela também, quando perguntou a mim e a outros
colegas se havíamos entendido esse mesmo trecho. Daí que propus à poeta que
escrevêssemos algo a partir dessa ideia de Bakhtin. Algo livre, aproveitando o
pretexto, um ponto de partida para soltar a pena. Acabei levando a sério, por
menos que pareça.
Comecei a
escrever no carderno, a lápis, como costumeiramente rabisco lampejos. A
primeira frase foi “A casa do russo caiu”. E ficou assim, encabeçando a
pequena folha pautada em branco, sozinha, por alguns dias. Até que continuei:
A casa do russo caiu
Feriu-se gravemente
Sangrou dois alfabetos
Russos. Não morreu por pouco.
Faltaram palavras (em português).
Poderia ter
sido só isso. Mas o exercício é importante para mim, agora. Senti que precisava
seguir. Esse trecho, quase sem alteração, acabou no fim do poema que considero
mais bem acabado, publicado acima. Li ainda hoje, de Mario Quintana, que o
poeta só pára de trabalhar no poema por acidente de publicação ou morte do
autor (ele escreveu melhor do que isso, claro, mas essa é a ideia). Mais tarde,
nessa última segunda-feira, antes da aula, no pátio bom de escrever do nosso
curso, dei seguimento, ainda no caderno, ainda a lápis:
A casa não era de barro
A frase não era de barro
Eram de cuspe, de engasgo
Sapos, sucos gástricos
De merda, merda
E de pensamentos contrários.
Uma pá grande deu jeito.
Dedo, furo de janela
Dedão, buraco de porta.
O russo do lado de fora
Fuma desconfiado
Espera pela chuva
Pingam letras árabes
Mas a casa agora suporta.
O que foi
isso? Pena Solta é como chamo isso. Deixar o pensamento fluir no papel. Tem
ritmo, eu acho. Aproveitei várias coisas. Mas quê mais?
Muitos de meus
poemas publicados em no site que mantenho
www.qualquerquoisa.com.br nasceram assim, com pouco trabalho
posterior à Pena Solta. Mas tem sido diferente com os textos que venho
escrevendo depois que começou o curso. Deixo-os decantando no papel. E na
cabeça. Trabalho possibilidades, questiono o sentido, com a pergunta mágica: “é
isso que eu quero mesmo dizer”?
A resposta foi
não. Só a sonoridade não mais me satisfaz. Não só isso. Quero um pouco mais;
dentro de minha limitação, hoje, posso um pouco mais do que isso – traduzindo e
resumindo o que tenho pensado sobre escrever. Então passei o tempo disponível
pela manhã de hoje, terça-feira, avançando um pouco no atraso do ponto no
trabalho, depurando o tal do querer-dizer – esse termo está no texto da
Ingedore, que ainda não li inteiro, mas vou. Tem outro termo no mesmo
parágrafo: “projeto de dizer”. Achei bem legal, combina com a
necessidade que sinto em organizar as ideias.
Mais abaixo,
há o que posso chamar de penúltimo rabisco do poema, então já escrito no
computador. Da primeira versão no papel, a lápis, para essa, o poema mudou
bastante. Quis por exemplo imprimir certa métrica - não estou habituado a essa restrição. Para seguir trabalhando no texto,
imprimi e passei a rabiscar a lápis as correções desejadas. Em alguns trechos,
é um rabisco sobre rabisco - e às vezes para manter tudo igual.
Outras
mudanças: Alterei a primeira frase solta do poema, depois da primeira estrofe,
para algo mais coloquial. Sinto que às vezes uma frase mais próxima de como
falamos informalmente, em meio à construção bem diferente da oral (que é o
poema), no meio do texto, quebra positivamente o “protocolo” e favorece a
sonoridade.
O russo pensou numa casa
De letras russas, estacas
paredes, pilares,
baldes de frases,
tirados de um livro
de ói ou évisqui.
Ao russo, a letra é de barro.
Mãos de lama, chão,
descalço a ver nuvens.
Não há cimento, vírgula
Palavras de encaixe
Crime e castigo
Firmeza é ilusão.
De barro e papel,
uma casa de estantes
De romances, poesia.
Uma casa de instantes,
Em longas leituras
sem previsão de breve chuva.
O russo sorri sua casa de barro.
Quando viveu em outra mais firme,
era de cuspe, engasgo,
sapos, sucos gástricos
de merda, tinta branca,
galhos e frases
e pensamentos contrários.
Mas aí choveu.
Era de outra língua a água.
A casa do russo caiu.
Feriu-se gravemente.
Sangrou dois alfabetos russos
e não morreu por pouco:
Faltaram palavras (em português).
Mas de barro e de frase, tudo que
cai se refaz.
Principalmente,
repensei esse fim. Compare a frase que fecha o texto logo acima com as que
estão no poema final, postado primeiro. Eu estava perdido com o fim do poema.
Queria amarrar a ideia das letras de barro, da casa, com o fato de o barro ser
reaproveitável (derretido pela chuva, de volta ao estado original). Mas algo me
incomodou nisso. Se palavras são de barro e derretem-se, e frases são refeitas,
o escrito e o dito são assim tão voláteis? O barro seco vira caco, não
exatamente barro novamente (… )
(…) Sabe o que
foram as reticências? Escrevendo sobre o processo, acabei voltando ao texto
final e quis deixar isso registrado – ué, é parte do processo! A última frase
seguia frouxa. E eu, inconformado. Pois acredito que achei um fim mais
apropriado ao que desejava escrever. E ficou mais coerente, para mim, com a
ideia inicial, a frase sobre o pensamento de Bakhtin. De resto, empresto de
novo algo de Quintana: “E nunca me perguntes o assunto de um poema. Um poema
sempre fala de outras coisas”.
Há tantos
modos possíveis, não? Esse foi o meu, agora. Com as restrições que minhas
escolhas, minha vida, me impõem. Mas que não me impedem de escrever, de algum
modo, do modo que posso. O escritor que sou nesse fim de março duvida mais do
que escreve, muito mais, que o escritor que eu era no começo de fevereiro. E
por duvidar mais, sinto-me mais seguro do que escrevo.