terça-feira, 10 de julho de 2012

Caro Senhor Vila-Matas,








Acabamos de nos encontrar no Museu de Arte de São Paulo. Ainda era cedo quando o avistei no Café junto aos seus anfitriões. Passei reto. Troquei o café e a proximidade com o escritor que tanto me intriga por uma visita a outro grande criador, só que esse um artista plástico.

Oswaldo Goeldi já morreu, mas enquanto por essas terras esteve usou tinta, madeira, carvão e nanquim pra nos contar de um mundo muito particular.
Mundo de coisas escondidas, de sombras materializan
do medo, de ventanias da alma, escuridões de dias e lugares secretos.
O mundo de Goeldi eram  ruas solitárias repletas de mortos vivos vagando por bairros inóspitos de grandes cidades.
Mas o meu encontro era com o escritor.
Devo dizer que já havíamos nos encontrado em 2010, em outro evento literário paulistano.
Gostei muito do que disse de seu jeito particular de comunicar-se, de seu personagem escritor.

Hoje também foi muito interessante a sua conversa. Mas devo confessar. O que mais me intrigou foi o senhor estar intrigado com um bairro de nossa cidade, Higienópolis. Aliás, para ser precisa, o que o intriga é o nome do bairro, Higienópolis. 
Achei graça do fato de que  o encontro com uma palavra composta tão esquisita e pomposamente possa despertar sua curiosidade.
Entendi que tal sentimento está diretamente relacionado 
as acusações que sofre de de inventar fatos, falas, frases inteiras que nunca, jamais existiram. Dar de cara com esse palavrão bizarro, Higienópolis deve funcionar quase como uma vingança literária.

Como manifestou desejo de saber mais sobre a região designada com esse nome tão particular , eu como moradora e sua leitora, vou aqui contar o que sei, o que imagino saber e até o que ainda não faço ideia, mas posso com grande coerência história, inventar.

Por essas bandas, no século XIX, resolveram se instalar os senhores fazendeiros de café. Gente que vinha do interior desse Estado e de Minas Gerais, com muito dinheiro nos bolsos e nos Bancos.
Tempos de fartura, de vontade de ser igual a burguesia Europeia, de viver como se vivia nas grandes cidades do outro lado do mundo.
E o dinheiro que circulava na época pagava por isso, pelo trabalho dos imigrantes recém-chegados da Itália, Espanha e Japão e por uma vida limpa, limpinha, com muita higiene e saúde.
O paraíso se fez: Higienópolis.
Em tempos de cólera, uma região que apesar de próxima ao centro da cidade, respeitava pressupostos modernos de urbanismo e saneamento. Uma grande área rural transformada em cenário do milagre do café.
O dono da terra tinha filhas. Colocou o nome delas nas principais ruas da nova vizinhança. Angélica, Veridiana, Maria Antonia.
Foram construidos palacetes respeitando os cânones da arquitetura do momento. Móveis, lustres, vidros, tapetes chegando ao porto de Santos, a preço de ouro, ou melhor, de café, o tesouro da época.

Pulo na história.

Higienópolis tem seus casarões demolidos e já na metade do século XX prédios modernos, altos e seguros seduzem a comunidade judaica que almejava morar perto de seus negócios, mas com muito conforto. Nascia assim, Higienópolis, o bairro dos judeus.

Mas eu não sou judia. Minha família veio da Calábria, não tão longe de sua Barcelona.
Cheguei à São Paulo na década de 80, vinda de uma cidade grande do interior de São Paulo, Campinas. Cheguei e por um acaso vim morar em Higienópolis, nome que demorei um pouco para falar sem tropeçar.
Depois de um ano, mudei-me. Foi ficando muito caro o aluguel no bairro de gente rica.
Agora, agorinha, acabei-me de voltar para cá. Não estou rica, nem o bairro ficou pobre, mas a vontade de minha família de morar em um lugar onde se possa caminhar, dormir sem barulho ensurdecedor, fazer as coisas básicas do dia a dia nas redondezas, foi grande o suficiente para conseguirmos sermos moradores diferenciados nesse bairro único.

Explico, ou melhor, preciso explicar o termo aparentemente deslocado, diferenciados.
Há um ano o governo do Estado definiu o lugar de uma nova estação de metrô na cidade.
Será nas imediações da Avenida Angélica.Lembra-se de que falei dos nomes das filhas dos Barões do Café em ruas e avenidas? Pois é. Na mais importante Avenida do bairro, uma estação de Metro.
Foi então, que a nossa poderosa TV Globo mostrou numa reportagem  a revolta dos moradores com uma estação de um transporte tão popular como o Metro (continue lendo tendo em mente a mentalidade tacanha da classe alta endinheirada brasileira) num bairro tão residencial. 
No meio da cobertura jornalística,
parece como em um pesadelo uma senhora elegante,protegida pelas grades de seu portentoso edifício, declarando que “com o Metro, Higienópolis seria tomado por essa gente diferenciada”. Leia-se: gente trabalhadora, estudantes, brancos, negros, bolivianos, indigentes, polícia, ladrão, travesti, puta. Rabinos, padres, gente, gente, gente como ela.
A história rendeu muito. Teve contra ataque. Acho que nunca mais a tal senhora saiu às ruas...

O fato é que agora moro em Higienópolis e sou alvo de piada dos amigos que não perdoam. Mas assumi. Sou diferenciada. Aqui hoje mora gente de todo jeito. Muitos artistas, jornalistas, escritores, coreanos, os judeus que agora são a velha guarda do pedaço e gente jovem a procura de sossego e inspiração.

Já tenho boas histórias para contar. A da filha que nem esperou o corpo da mãe judia esfriar e jogou tudo que tinha na rua, em frente ao apartamento em que morava; da torcida do Corinthians que na final da Copa Libertadores da América tomou as ruas de Higienópolis com fogos de artifício e muito barulho, do Shopping Center irregular, dos viciados em crack ganhando nossas ruas, de personagens saídos de um livro ainda e para sempre inacabado, Higienópolis.

Deixei meu endereço no meu cartão e o senhor deixou sua marca registrada, um desenho de um homem em poucas linhas, no seu, agora meu, livro.
Quem sabe ainda nos encontramos mais uma vez, aqui no meu bairro ou no bairro que o senhor certamente vai criar nas páginas de seu próximo livro.
E se precisar de inspiração visual, não deixe de visitar o Goeldi.

Um abraço,
Maria Antonia



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